segunda-feira, novembro 06, 2006

"Sinais interiores de riqueza"

« Quando em 25 de Dezembro de 1863 Victor Hugo escreveu num dos seus cadernos Sou um homem que pensa noutra coisa
referia-se, é claro, a mim. Quando almoço com alguém, por exemplo, deixo um sorriso sentado no lugar e escapo-me em bico dos pés para outra mesa do restaurante, a desenhar comboios e navios na toalha de papel na esperança de partir,numa locomotiva ou num paquete de tinta, para longe de um mundo de saleiros,garrafas de branco e cabeças de pescada.Em pequeno, na época em que me tentavam ensinar o catecismo tinha de Deus a ideia de um vertebrado gasoso era eu.
O resultado disto é que observo os objectos do quotidiano com a estranheza do homem das cavernas: nunca fui capaz de mexer num vídeo, todas as manhãs me corto com a gilete, preencher um cheque é quase tão difícil como resolver um problema de torneiras do género Se um tanque tem 3 metros de lado,quanto tempo uma torneira que debita 7 decilitros por minuto, etc.Desesperei os instrutores na tropa a virar-me para eles de espingarda carregada a perguntar
- Como ?
numa incompreensão sincera e a surpreender-me de os ver atirarem-se para o chão berrando
- Desvia essa merda
numa angústia de que ainda hoje não compreendo o motivo.
Talvez tenha herdado isto de um tio remoto que num velório, espantado com a tristeza do viúvo, o consolou com uma palmadinha no ombro
- Não pense mais na morte da bezerra
Sou um homem que pensa noutra coisa, que tenta abrir a fechadura da porta com o cigarro e que fuma um molho de chaves por dia : se adoecer de cancro do pulmão será um canalizador a operar-me. As palavras grandiosas como Trabalho, Família, Dinheiro, atravessam-me sem me tocarem. Dá ideia que não sei viver com os que amo ou que rejeito o seu afecto: não é verdade.O que acontece é que às vezes enquanto me acariciam estou a observar as cegonhas na mata do sótão da tia Madalena, ou na esplanada da Praia das Maças, ao lado do meu avô, a comer um sorvete de morango. E gosto das pessoas modestas porque os sinais interiores de riqueza me comovem.
A propósito de sinais interiores de riqueza a semana passada, na consulta do Hospital Miguel Bombarda, vi uma mulher nova, de quarenta anos: nasceu-lhe um caroço no peito e o médico não a quis operar porque a doença já lhe atingira os ossos. Quimioterapia. Uma mulher bonita, inteligente. Disse-me
- Ainda gostava de viver mais algum tempo
e vai morrer daqui a nada.Depois sorriu e perguntou
- Vou ficar melhor não acha?
ela sabia que não e sabia que eu sabia que não
- Claro que melhora
disse eu
- Está linda sabe?
- Toda a gente me diz isso agora.Faço quarenta e um no mês que vem.
Trazia o vestido dos domingos, colar,anéis,um risco azul nas pálpebras. A enfermeira abriu a porta, espreitou, viu que eu não estava sozinho, desapareceu.E o sorriso
- Se calhar ainda nos voltamos a ver
e eu a apertar-lhe a mão
- Se calhar.
Ao sair até a maneira de andar era elegante.E então pensei:ainda bem que sou um homem que pensa noutra coisa.Se não fosse um homem que pensa noutra coisa ia ter vontade de chorar.
De forma que no momento em que o doente seguinte entrou já me esquecera dela.Já me esquecera dela. Já me esquecera dela.
Graças a Deus já me esquecera dela. »


ANTUNES,António Lobo, Livro de Crónicas, Lisboa,Dom Quixote,5º edição,2002

3 Comments:

Blogger Luís said...

Há pessoas assim. Ricas por dentro.
Obrigado por nos lembrares isso.

Um abraço,

Luís

novembro 06, 2006  
Blogger Fatima Vinagre said...

Sempre há seres humanos com um interior bom! Às vezes até me esqueço dessa existência! Bj

novembro 07, 2006  
Anonymous Anónimo said...

"A gente todos os dias arruma os cabelos: por que não o coração?" (Provérbio Chinês)

novembro 07, 2006  

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