quinta-feira, novembro 16, 2006

Felizmente

ainda há pessoas que não estão na moda seja lá o que isso for e nos vão oferecendo delicias como esta:

«Não morras agora que estão a olhar para nós

Antero.Antero.Antero. Não me adormeças aqui na esplanada Antero, não feches os olhos, não escorregues na cadeira, olha os barquinhos no tejo, olha as gaivotas, sempre gostaste tanto das gaivotas Antero, bebe a cerveja antes que fique morna, endireita-te, não faças essa cara, se não querias vir passear a Algés porque é que não me disseste esta manhã, porque é que não te voltaste para mim
- este domingo não me apetece ir a Algés
e pronto, ficávamos em casa a ver crescer a planta da sala como todos os dias desde que nos reformámos, nunca discuto contigo pois não,nunca protesto, compraste aquele sofá horrível e eu calada, tiraste o retrato da minha irmã da cómoda e eu muda,não percebo o que tinhas contra a minha irmã, cada vez que ela nos visitava começavas a apertar a boca, a soprar, a mudar as coisas de sítio, não inclines a cabeça para a frente que entornas a cerveja, não empurres com o cotovelo o prato dos tremoços, não brinques comigo Antero, andas sempre sério, não te oiço uma gargalhada há séculos, não é agora diante desta gente toda que te vais pôr a torcer como um palhaço, tem algum jeito Antero, limpa o fio de cuspo que tens no queixo, não descoles a placa, não me obrigues a meter-ta para dentro da boca à força, uns dentes todos certinhos, todos brancos, quando os tiras à noite para os lavares ficas mais baixo, quandos os encaixas nas gengivas até dá gosto ver-te, lembra-me um rei de coroa e tudo, cuidado com a placa que custou um dinheirão Antero, não te dobres tanto para a senhora da mesa ao lado que o marido repara, tantas gaivotas e tu desinteressado Antero, tantos barcos, o combóio de Lisboa a apitar e tudo, a outra banda, um dia lindo, se não fosse a criança aos gritos no carrinho de bebé era uma paz na esplanada Antero, se é por causa da criança que ficaste assim mudamos já de mesa, agarramos na cerveja, nos tremoços, no sumo, no pastel de nata e vamos lá para trás Antero, não fiques pálido, não dês esses soluços, não estremeças, fala comigo, eu guardo-te a placa na carteira, pronto, mas fala comigo Antero, não me importo de te ver sem placa se falares comigo, olha as pessoas a repararem em nós, olha aquela senhora a acotovelar o marido e a apontar-me com a torrada Antero, nunca gostaste de dar nas vistas. Antero, o que se passa, se eu punha um decote, mandavas-me vestir o casaco de malha
- Que pouca-vergonha é essa Maria Emília ?
se ao cruzar a perna ficava com os joelhos à mostra mandavas-me baixar a bainha
- Estamos no circo ou quê Maria Emília ?
se pintava o cabelo para esconder os fios grisalhos mandavas-me voltar ao salão na manhã seguinte
- Pensas que é Carnaval Maria Emília?
e agora és tu a chamar a atenção, és tu a descer pela cadeira abaixo como os miúdos, és tu com essas bolhinhas cor-de-rosa na boca, olha se eu te ralhasse, olha se eu perdesse a cabeça
- Estamos no circo ou quê Antero ?
mas não perco, porto-me como deve ser, não faço cenas, só peço que te endireites, mais nada, só peço que me fales, que chupes o cuspo, não roces os dedos pelo chão que está sujo, pontas de cigarros, cascas, cocó de pombos, papéis Antero, não te sentes mal pois não, não vais morrer pois não, não morras agora que estão a olhar para nós e é uma vergonha, não posso dizer ao empregado
- O senhor desculpe mas o meu marido morreu
espera até chegarmos a casa e morre então se quiseres mas aqui não Antero, que mau aspecto, que vergonha, se queres morrer morre a sério como toda a gente, a gemer no hospital, com radiografias e análises e médicos, imagina a vizinha de cima
- O Antero morreu numa esplanada de nariz nos tremoços calculem
diz-me lá se gostavas que dissessem isso de mim, de nariz no pastel de nata, calculem,
imagina que bonito Antero, um antigo chefe de secção de nariz nos tremoços, levanta-te imediatamente, fazes o favor de te levantar, de esperar até chegarmos a casa, há autocarros de dez em dez minutos, não custa muito, e depois tiras o casaco, desabotoas o colarinho, pões-te à vontade, que ninguém te diz nada, enquanto aqueço o jantar. »
ANTUNES, António Lobo in Livro de Crónicas, Lisboa,Dom Quixote,5ªed.,2002

4 Comments:

Blogger antónio paiva said...

................
é! deixemo-nos de modas
o que é bom será sempre bom
de qualquer modo
................

(a fotografia foi tirada na ilha onde me encontro agora a viver)

:)

novembro 16, 2006  
Blogger Miguel said...

De cortar a respiração!
Intenso, profundo, horrivelmente belo!

Obrigado por partilhares

novembro 16, 2006  
Blogger antónio paiva said...

.......................
a reposta às tuas questões
estão no mesmo post onde as colocaste
.......................

Cumprimentos

novembro 16, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Ter alguém que, com os seus olhos, assiste à degradação da pessoa com quem passou toda uma vida, recheada de alegrias e tristezas, de esperanças e desalentos é de facto destruidor. Por isso, é que o ser humano, procura, incessantemente, o "elixir da juventude", pois para ele o combate à degradação física e mental é primordial, tanto mais que, hoje em dia, quem não tiver compleição física suficiente e discernimento mental é por e simplesmente, rejeitado. O tema abordado na postagem é de uma acutilância atroz, reduz o ser humano à sua mais frágil condição. A carcaça não acompanha a mente que, só com a morte do corpo se consegue libertar para, segundo alguns, se alojar noutro mais jovem. É bonita a teoria da reencarnação.
Não desejo morrer doente, a sofrer, impotente perante os desafios, consciente do fardo que serei para os outros, privá-los da sua liberdade. Preferível será ir para um depósito de velhos, ou para um lar (com um pouco mais de sorte) ou até, morrer com saúde. Isso sim, seria o ideal. De repente, sem dar trabalho....para que não me vissem (a morrer devagar)

novembro 17, 2006  

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